A foto foi tirada no princípio de janeiro de 1885. E poderá surpreender à primeira vista porque, como quase todos sabem, a linha ferroviária que atravessa a ponte centenária Valença/Tui está situada no tabuleiro superior. A plataforma inferior, numa primeira fase foi simplesmente pedonal e logo depois passou a ser utilizada para a circulação de automóveis.
No entanto, sim. Foram construídos carris ferroviários dentro desta ponte. A obra, que tinha começado em 1882, estava praticamente concluída. Faltavam apenas os derradeiros testes de segurança. Ora, uma dessas provas passava pelo teste de ambos os tabuleiros com grandes pesos.
Na parte superior, foi simples: a ferrovia já lá estava e bastou fazer circular os vagões. Mas as normas exigiam também que o tabuleiro inferior fosse sujeito às mesmas provas. Foi assim construído um curto segmento de carris.
De acordo com a obra Historias del Tren, de Rosendo Bugarín, “nos dias 8 e 9 de janeiro de 1885 foram feitas as provas da estrutura. Exigiram a montagem de uma ferrovia improvisada na plataforma inferior com o objetivo de serem atravessadas por pesadas locomotivas a vapor sobre a futura estrada pedonal”.
Os testes terão sido bem sucedidos. Tudo parecia pronto para uma inauguração com pompa e circunstância nesse mesmo ano. Mas soaram os alarmes em Espanha. O país estava a ser seriamente afetado por um vírus – a cólera.
Poucos meses depois, em junho, a preocupação começa a atingir Portugal. O Ministério do Reino não perde tempo. Envia de imediato aos Governadores Civis “desinfetantes e repete-lhes os procedimentos a seguir, desde o isolamento militar do local, se confirmada a suspeita de cólera, ao uso de água fervida, à limitação de toda a atividade económica que implicasse comunicação de bens e pessoas entre Portugal e Espanha”, conforme refere a historiadora Laurinda Abreu, em A luta contra as invasões epidémicas em Portugal: políticas e agentes, séculos XVI-XIX.
Entra em atividade um enorme cordão sanitário de fronteira. Valença dispara o alerta vermelho. A ponte estava prestes a ser inaugurada e as passagens entre os dois países pelo rio Minho eram ainda feitas de barco.
Pesca no Minho proibida – Começam a ser construídos os lazaretos
De Lisboa chega a proibição da pesca no rio Minho “ameaçando-se os infratores com o afundamento dos barcos e a quarentena para os ocupantes, bem como as feiras em que costumavam participar espanhóis”. As ordens eram claras, precisas e para serem cumpridas à risca.
As imposições não ficaram por aqui. Conta ainda a mesma obra que “os os ceifeiros eram proibidos de viajar para Espanha”. Os jornais espanhóis apontavam-nos como os principais suspeitos da difusão de cólera por todo o continente.
Foram construídos os lazaretos, edifícios destinados aos que ficavam de quarentena [rigorosamente 40 dias]. “A 30 de junho, 1 914 homens e 54 cavalos faziam o cordão de Caminha, a que se juntavam mais 14 homens e 8 cavalos no lazareto; duas semanas depois, o contingente tinha subido para 2 631 homens e 61 cavalos. No início de julho, a fronteira estava sob o controlo de 538 cavalos e cerca de 4 500 homens, quase um quinto de todo o exército, reservistas incluídos”.
Conforme noticiou o Faro de Vigo na altura, as tropas espanholas mantinham-se atentas ao rio Minho. Todos os que passavam tinham de submeter-se a uma “rigorosa quarentena” o que, de acordo com o jornal, motivou largos protestos.
O clima era tenso entre os dois lados. Com a ponte praticamente pronta e tanta gente a precisar de fazer a travessia pelos mais variados motivos, os soldados tinham ordens para cumprir. Ninguém seguia sem passar pelo Lazareto.
As condições daqueles edifícios, pelo menos no de Valença e conforme descreve o blog Ferruxadas, eram razoáveis. Todos os que por ali passavam eram alimentados e acomodados de forma aceitável.
Bilhete p’ró comboio? Só com carta de saúde!
A escalada de pânico com as informações vindas do lado de lá trepava. No início de julho, conta Laurinda Abreu, “a venda de bilhetes de comboio para o interior do país passou a fazer-se mediante a apresentação de cartas de saúde, que podiam ser passadas pelos párocos”.
No parlamento, as discussões eram acesas entre os deputados. O Ministro Barjona de Freitas responsabilizou mesmo a oposição “por potenciais problemas que surgissem caso manipulassem a opinião pública contra as medidas que o governo estava a tomar: enquanto ali o injuriavam, ele trabalhava afincadamente em articulação com a Junta Consultiva da Saúde, outros ministérios e as forças no terreno para evitar que o país seguisse o exemplo de Espanha, «que já hoje está convertida num hospital e parece tender a converter-se num cemitério»”.
Só em outubro é que, conforme refere ainda a historiadora, os governadores civis foram chamados a fazer o ponto de situação, informação que permitiria começar a reduzir a duração das quarentenas no final de novembro. Em Valença passaram a ser apenas de cinco dias. Depois passaram a apenas três. Em janeiro do ano seguinte resumiam-se apenas a uma “observação sanitária de 24 horas”.
Finalmente o regresso à normalidade
Os primeiros meses de 1886 trouxeram a normalidade ao Vale do Minho e, consequentemente, ao resto do país. As populações regressaram às suas lides no rio Minho. Os lazaretos foram sendo encerrados. “Os cordões sanitários iam sendo levantados mas mantendo o serviço telegráfico, não fosse registar-se algum recrudescimento da epidemia”.
A 25 de março desse ano foi finalmente inaugurada a ponte internacional. Estava pronta desde 10 de outubro de 1884.
Vários especialistas apontam que, durante o século XIX, a epidemia de cólera em Portugal fez mais de 40 mil mortos. É causada por uma infecção no intestino provocada pela bactéria vibrio cholerae. A bactéria faz com que as células que revestem o intestino produzam uma grande quantidade de fluidos que causam diarreia e vómitos.
Atualmente, a cólera pode ser tratada de forma simples e efetiva por meio da reposição imediata dos fluidos e sais perdidos devido aos vómitos e diarreia. Com a reidratação imediata, menos de 1% dos pacientes morrem atualmente com esta doença.
in Rádio Vale do Minho
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