terça-feira, 29 de março de 2016

Padre na Páscoa atravessa o Rio Minho

Neste período do ano em que a primavera nos saúda com mais luz e flores, invadem-nos rituais cósmicos, teológicos e escatológicos.
Há uma grande simbologia misturada com flores, gestos, sons, aromas, tons, palavras, canto, fogo, água, música clássica e música de cariz etnográfico, e escutamos narrativas bíblicas.
Ouvimos relatos de memórias familiares, num verdadeiro culto dos antepassados em tempo festivo.
Lembramos do escritor Mário Cláudio: “Guilhermina partiu, muito longe demora, nunca saberemos que história contaria”.
É frequente ouvirmos dizer: “A minha vida dava uma história; se fosse a contar tudo o que passei dava um bom romance. Quando tiver tempo, vou escrever a história da minha vida. O filme da minha vida enchia cinemas. Tenho muito que contar aos meus netos, pois a minha história é muito enredada”.
Nos meios rurais ainda se acrescenta: “Ai! Se soubesse escrever em letra redonda as dificuldades que passei, fazia chorar muita gente… Ainda me lembro”… e a história vai sendo contada.
Georges Duby no prefácio da grande obra “História da Vida Privada” escreve: “A excelente ideia de apresentar a um grande público uma história da vida privada partiu de Michel Winock.”
Philippe Ariés agarrou-a e lançou este empreendimento” (…)
Em cada época “alguns provêm de um passado longínquo”, notava Philippe Ariés num dos documentos de trabalho. Outros, acrescentava, “mais recentes, estão destinadas a evoluir, desenvolvendo-se, abortando ou ainda modificando-se ao ponto de se tornarem irreconhecíveis”.
Se as pessoas tem história, também os territórios a possuem, e por isso falamos nas paisagens culturais, sonoras e globais, podendo dizer que são fruto duma longa elaboração humana.
O rio Minho é referido pelos romanos, e Estrabão afirma que é o maior da Lusitânia, sendo “navegável oitocentos estádios”. Tem a sua nascente nos montados da Meira (Lugo), transpondo diagonalmente a Galiza e a partir de S. Gregório, concelho de Melgaço, forma a linha geográfica Espanha-Portugal.
Sendo um rio lendário e mítico, possui uma fauna riquíssima, capturando-se nas pescarias a lampreia, o salmão e o sável.
Devido à abundância do apreciado peixe e à fertilidade das suas margens, os galegos chamam-lhe “Pai-Minho”.
Os poetas inspiram-se na sua aragem bucólica e força cósmica-
Se o poeta raiano João Verde Lançou largo olhares pelas suas margens, a sua alma cantou-o como consta na azulejaria; “Vendo-o assim tão pertinho,/ A Galiza mail’o Minho” (…)
A poetisa Rosália de Castro não o esqueceu:
“Serpenteando vai o Miño
Fondo às veces como o mare
Paro sempre caladinho.
Caladiño e misterioso
Como sombra ou passo leve,
Que non quer turbar reposo…”
Pois que o rio Minho continua caladinho e só nos revela alguns segredos das memórias com rituais, como o “Lanço da Cruz”, que ocorre na segunda-feira de Páscoa.
Assim, poderemos sentir reminiscências do culto das águas e saborear a sua riqueza piscícola.
CRUZ DE PRATA MARTELADA
Cristelo Côvo é uma aldeia do concelho de Valença, banhada em toda a longitude pelas águas apressadas do rio Minho.
Possui algumas singularidades patrimoniais, sendo uma delas, a cruz paroquial da primeira metade do século XVII. O conjunto consta de três elementos; o pé, o nó e a cruz.
O pé é cilíndrico e oco, para o encaixe da haste processional, decorado, com motivos geométricos.
O nó consta de três partes; um foro decorado com demónios e querubins, donde podem seis tintinábulos; um cilindro, separado do toro anterior por uma escória, dividido em seis partes por pilastras com pináculos de tradição manuelina, formando nichos de estilo renascença, onde se situam as imagens de S. João, S. Tiago Maior, S. Pedro, Stª. Maria Madalena e Nª. Senhora da Conceição; o nó remata por outro toro menos espesso decorado com anjos e demónios. 
A cruz está decorada com máscaras grotescas e querubins nas pontas. No cruzamento das hastes apresenta esculpidos um Senhor dos Passos com a virgem, um verdugo e um discípulo.
O processo de escultura é de prata martelada e repuxada.
ONDE AS ANDORINHAS FAZEM NINHO
Em Março de 2001 concretizamos uma recolha antropológica em Cristelo Côvo e assim registamos:
“Esta cruz paroquial e processional só é utilizada nas grandes solenidades”, conforme nos revela Padre José Marques Alves, pároco há quarenta e quatro anos na aldeia valenciana. “Só o peso da prata deve valer dois mil contos”, revela o presbítero que conserva esta jóia acautelada de mão alheia, e por isso guardada num local impenetrável.
Aquando a visita pascal, é a referida cruz levada de casa em casa, para a cerimónia do anúncio da Ressurreição.
O Revº Marques Alves que vive numa casa paroquial datada de 1677, e onde as andorinhas fazem ninhos, sendo sereno e amável, vai gastando, o pouco do seu tempo disponível, no largo passal onde trata da vinha e das árvores, oferecendo, a quem o visita, uns bons limões para ajudarem a temperar os sáveis que porventura caiam nas redes colocadas no rio, mesmo ali ao lado.
Como em todas as aldeia do Minho, a visita pascal é uma cerimónia festiva e densa de simbologias.
Ela concretiza a mobilidade social, fortalece os laços da comunidade, refresca a coesão social, aumenta a reciprocidade, sendo a comensalidade (o almoço da Páscoa) um sinal marcante da época do ano. O cabrito assado no forno de lenha, espalha os aromas que são superiorizados pelos paladares.
Se os testemunhos da boa vizinhança e amizade são bastantes, os laços de consanguinidade são mais fortes. Os afilhados e padrinhos nos dias pascais encontram-se para gestos de agradecimento, que passam pelos folares diversificados.
O Pároco Marques Alves Vai passando pelas casas dos seus paroquianos, levando o mordomo a cruz paroquial e o acólito a caldeira com água benta.
LANÇO DA CRUZ
Aqui o além ouve-se o estralejar de foguetes, os sons dos zés-pereiras e a gaita galega.
É a segunda-feira de Páscoa.
É o dia do lanço da cruz
É o dia em que o Padre Marques Alves atravessa o rio Minho, para ir à margem galega anunciar a Ressureição e cumprimentar em galego todos os participantes.
É uma cerimonial interessante, único, sem fronteiras e que tem uma tradição muito antiga.
SIMBOLOGIA DA PURIFICAÇÃO
Os rituais da Páscoa, inserem-se no tecido mítico dos significados da água, símbolo da purificação e de regeneração em todas as mitologias, e também no cristianismo, através do ritual do baptismo e da bênção da água benta, de acordo com H. Alves. As aspersões de água assumem uma grande importância na prática do ciclo pascal, de acordo com a liturgia e a tradição.
Consultando “O Minho Pitoresco” (1886) de José Augusto Vieira, e a obra “Portugal Antigo e Moderno” (1874) de Pinho Leal, ambos os escritores fazem referência ao cerimonial do “LANÇO DA CRUZ”.
Consiste no seguinte: “O Abade, o mordomo, e alguns pescadores, metem-se com a cruz dentro de um barco, e atravessando o rio, o benze o pároco e depois se larga uma rede, sendo para o abade o peixe que ela colher. Poucas vezes o pobre abade arranja cousa que valha a pena, mas em 1872, favoreceu-o a sorte, arranjado com o barco do Lanço da Cruz, 16 sáveis.
Quando está bom é este um divertimento a que concorre grande multidão de Portugal e Espanha, ficando então despovoada a vila de Valença”.
Assim descreve Pinho Leal.
A descrição do Minho Pitoresco acrescente que a cruz ornamentada com fitas e flores, e o pároco toma lugar no barco mais novo, pormenores que se conservam nos tempos de hoje.
O Padre Marques Alves realiza a cerimónia com toda a solenidade e envolto pelos sons festivos duma e outra margem. Vai dizendo que para além das duas lampreias que sempre caiem na rede, também no ano de 1955, pescaram dois sáveis.
VISITA PASCAL SEM FRONTEIRAS
A “Visita Pascal sem Fronteiras”, assim a podíamos denominar, também envolve o “Cura Galego”.
Inicia-se coma bênção das redes do lanço, e prossegue com a passagem de comitiva duma à outra banda, o “dar a cruz a beijar”, pelo lanço da cruz e respectiva oferta da pescaria ao pároco de Cristelo Covo. Tem sempre boa sorte, e nas redes aparecem as duas lampreias como trancas.
Os barcos portugueses vão à margem galega e outras embarcações com comitiva semelhante rumam a “banda” portuguesa, ao sítio da  Senhora da Cabeça. Aí também se dá o cruxifixo a beijar, manifestando o “Cura da Galiza” (Sobrado – Tomiño) a todos a sua satisfação pela “boa irmandade” e desejando “boas páscoas”.
HOXE HÁ FESTA AO PÉ DO MIÑO
Nestes rituais do “Lanço a Cruz” recordamos o conto “Fronteira”, de Miguel Torga: “O rapaz era do Minho, acostumada ao positivismo da sua terra: um lameiro, uma junta de bois, uma videira de enforcado, o abade muito vermelho à varanda da residência e o Senhor pela Páscoa”.
O “Lanço da Cruz” é uma autêntica romaria luso-galaica com sons de gaitas e zés-pereiras.
Há música no ar e alegria nos rostos…
São os laços antigos e conversas de hoje.
É de recordar o poema “Hoxe há Festa ao pé do Miño”, do arcebispo-poeta Gago González:
“Xá non teño pai nin nai/nin nesta terra parentes;/sou filha de herbas tristes/ Neta de águas correntes”.
A festa continua na terça-feira de Páscoa à volta da capela da Senhora da Cabeça.
Há muitos anos dizia-se nas terras de Valença, por altura da Páscoa: “O sábado é para matar o carneiro; o domingo para o assar; a segunda para o comer e a terça-feira para acabar”.
Sim, a festa continua com mais protagonistas da zona raiana das duas margens do rio Minho.
A “irmandade” tem-se reforçado, “olhando para o futuro do passado”, e numa continuidade e esforço da paisagem cultural.
Se o Padre José Marques já não atravessa o rio, pois está jubilado, o Padre Eugénio Silva, actual pároco de Cristelo Côvo cumpre com solenidade os rituais transfronteiriços acompanhado por sons musicais das duas bandas.
Por José Rodrigues Lima in Minho Digital


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