quarta-feira, 1 de abril de 2015

Valença e Tui, o Trapiche e as Estórias da Fronteira

Maria Melim passa os varandins com medo. As mãos enrugadas procuram o apoio das grades. A centenária ponte de ferro entre Valença e Tui já não é percorrida, de olhos quase fechados, como outrora. Maria cruzou-a centenas de vezes. Foi uma trapicheira.
"Nós levávamos ovos daqui [Valença] para lá [Tui] e depois trazíamos o peixe de lá para cá", lembra Maria. Escondidas das autoridades, as mercadorias passavam para o lado oposto da margem. “Os ovos no início iam nas mandranas, mas depois eram levados à cabeça em gamelas de pau. E depois cobríamos por cima com hortaliça para não verem o que levávamos ali.” Era assim que atravessavam a fronteira.
Em troca do pão chegava a fruta, em troca do arroz chegavam os remédios e em troca dos ovos chegava a boa pescada de Vigo. O peixe escondia-se entre as roupas das trapicheiras, que transportavam estas mercadorias.
Quando as fronteiras estavam fechadas, o trânsito de alguns bens entre Portugal e Espanha não era permitido. A passagem pela alfândega e pela aduana com produtos proibidos e sem o pagamento das taxas era possível, mas ilegal. Muitos fizeram desta circunstância um modo de sobrevivência. 
O trapiche esteve presente na vida de Maria durante menos de uma década. Tinha 21 anos quando começou a dedicar-se a esta atividade típica das populações da raia. Contra a vontade dos pais, que viviam "muito bem", transportou mercadorias entre o concelho valenciano e tudense. “Eu embora levasse o peixe e assim para lá… mas o dinheiro era para mim”, conta.
O pouco dinheiro ganho era conseguido à custa de riscos porque o transporte de bens entre os países era controlado. Mas, nestas pequenas localidades, autoridades e trapicheiras eram conhecidos e, por vezes, até amigos. “O trapiche era ilegal, mas como sabiam que as pessoas necessitavam disso para sobreviver, era um pequeno contrabando consentido”, esclarece o historiador Alberto Pereira de Castro.
"Fui muito pouco tempo trapicheira", disse Maria. As suas travessias pelos varandins terminaram quando casou e foi para França. Quando voltou ao país, o fim do trapiche já fora há muito anunciado, devido à entrada de Portugal no Mercado Único. Aos 82 anos, Maria já não passa a Ponte Internacional da mesma forma.
"Como era ser trapicheira? Era ir pela ponte fora, com a mandrana carregada de café ou ovos e fugir aos carabineiros", conta Inês Lourenço, 86 anos. Vestia uma blusa e uma saia mais larga e usava sempre uma espécie de avental com muitos bolsos, ao qual se dá o nome de mandrana. As camadas de roupa disfarçavam as grandes quantidades de produtos.
Inês começou a atividade quando ainda era criança. Casou-se e mesmo andando “sempre de barriga, até de gémeos” não deixou o trapiche. “Tinha muitos filhos e tive que trabalhar para lhes dar de comer”.
A necessidade levava-a a sair de casa para fazer o habitual caminho que demorava duas horas quando ia “ligeirinha”. Chegava a Espanha e entregava as mercadorias aos compradores. “Já tínhamos casas certas, fregueses certos”, afirma. E regressava a Portugal, de novo carregada com outros produtos.
Trajeto entre os locais onde as trapicheiras eram revistadas
Inês lembra-se que até o pão era levado para o país vizinho naquela época. “Depois da Guerra Civil de Espanha, o país estava carenciado de muitas coisas e, então, era esta gente que levava o que eles necessitavam”, explica Alberto Pereira de Castro.
Mas os produtos necessários do outro lado do rio nem sempre passavam despercebidos aos olhos das autoridades. Inês fugiu muitas vezes. “Deixava-os virar as costas e fugia… então como era? Esperava que me dessem ordem? Nunca ma davam”.
Na alfândega e na aduana, muitos sabiam as necessidades pelas quais a valenciana passava. E, por isso, muitos a ajudaram. “Havia uns que tapavam os olhos, mas outros não, eram o diabo, porque estavam bem”.
O medo não travou Inês, porque apesar de todas as dificuldades, nunca o teve. Só uma operação a fez parar. "Já não passava porque já não podia. Não podia carregar e o burro não podendo carregar, tem que arriar". Mas até esse momento foi com o trapiche que conseguiu alimentar os filhos.
Esta peculiar prática da zona da fronteira norte do país não contribuiu só para o bem-estar da família de Inês, mas também para o de muitas famílias que viviam na raia. Para o historiador valenciano, o trapiche era importante para a economia familiar, não para uma economia do concelho.
O trapiche foi essencial para a família de Salustiano Faria. Filho de um barbeiro e de uma trapicheira, com cinco irmãos, passou muitas vezes a ponte para ajudar a mãe. "Quando tinha oito anos, também andei, de uma forma inocente, no trapiche", disse.
Antes de ir para a escola, Salustiano e um dos irmãos transportavam café para o país vizinho. “A nossa mãe punha-nos dentro de uma camisola, bastante larga, determinada quantidade de café, quer nos braços, quer no peito, quer nas costas”, relata. Para não levantarem suspeitas, jogavam à bola enquanto passavam a rua em frente à aduana espanhola. No regresso a casa, a mãe recompensava-os com “uma posta de bacalhau frito no meio de um pão e um refrigerante”, numa taberna à saída de Espanha.
Mas o tempo para as recompensas não foi muito. Salustiano não tinha a consciência de que a atividade era ilegal. “Para mim, passar a ponte era a mesma coisa que andar em Valença, não tinha a noção da responsabilidade”.
Já não ajudava a mãe, mas mesmo assim esta atividade continuava a estar presente. Quando esteve na Guerra Colonial e todos os colegas se orgulhavam das profissões dos pais, Salustiano procurava esconder a verdade. Encurralado, acabou por dizer que a mãe tinha uma empresa de transportes internacionais: levava produtos de Portugal para Espanha e de Espanha para Portugal.
Com 66 anos, Salustiano orgulha-se da mãe, porque, tal como as outras trapicheiras, "fazia do corpo dela um veículo de transporte". Para ganhar algum dinheiro e para suprimir as carências da família, enfrentava todos os dias o medo ao passar pelas três autoridades. “Vai sair-me o coração pela boca”, desabafava a mãe de Salustiano com o filho antes da revista.
in immersive

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