terça-feira, 13 de março de 2012

São Teotónio, por Francisco José Viegas



São Teotónio (1082-1162), o primeiro santo português, não foi apenas um homem da Igreja, nem – como hoje sabemos – um homem do altar e do trono, conselheiro de D. Afonso Henriques, conspirador, jogador no tabuleiro do xadrez político, um místico que se prometeu a si próprio o recolhimento em Santa Cruz de Coimbra (que ajudou a fundar), entre claustros inacabados e silêncios obrigatórios. Foi, além do mais, um peregrino que aceitou até às últimas consequências a escolha da sua peregrinação.
E essas consequências foram sempre assumidas de tal forma que ainda hoje os historiadores, canónicos ou não, se interrogam sobre as razões que o teriam levado a recusar dois bispados, o de Viseu (a cuja Sé ficou ligado) e o de Coimbra.
Isto numa época em que o poder significava mais do que hoje e era mais prestigiante e prestigiado do que hoje. Por isso, penso no que recordaria Teotónio em Jerusalém, onde foi em peregrinação por duas vezes — e, também, no que recordaria Teotónio depois de Jerusalém, a terra que transforma e muda, a poeira que nunca assenta, o olival que nunca deixa de reflorescer.
Eu tenho uma ideia, mas é uma ideia puramente romanesca e pouco dada à conspiração política, como era usual serem as relações entre o trono e o altar, ou entre Teotónio e Afonso Henriques. Tenho a ideia de que Teotónio era um viajante, além de um peregrino. O peregrino viaja para cumprir uma missão; o viajante sabe que a sua missão nunca está terminada, e que, depois de percorrer o mapa da peregrinação tem de percorrer, com os olhos, o atlas da sua solidão — e o atlas da sua recusa.
A JUSTIÇA COMO DEVER
Assinalam-se agora os 850 anos da sua morte e os 930 do seu nascimento; a exposição notável (’São Teotónio: Patrono da Diocese e da Cidade de Viseu’) que se apresenta no Museu Grão Vasco, em Viseu, reproduz quadros da vida e destino de Teotónio, o homem de Ganfei (Valença), o homem de Viseu, o homem que conheceu os caminhos dos peregrinos e a sua solidão – e do seu tempo, cuja escuridão ilumina e, ao mesmo tempo, abraça.
Imagino que Teotónio não foi apenas um santo e um solitário justo da Igreja desse tempo, um influente da política, um líder do seu povo. Mais do que isso, ele soube manter, apesar das ligações claras e muito precisas ao poder e à vida turbulenta do nosso primeiro rei, de quem terá sido conselheiro próximo — ele soube ser um homem religioso e um religioso para quem a justiça era um dever para além da religião.
Ao escolher a terra, o fogo, o ar e a água como marcas essenciais desta exposição notável, João Soalheiro mostra como, além do mais, ignoramos a grande riqueza da vida e peregrinações de Teotónio. Depois de visitada a exposição, no Grão Vasco, passe-se para a Sé vizinha, onde o espírito de Teotónio paira nos seus granitos e melancolias.
Um dia gostaria de a escrever, a biografia de um dos nossos maiores — e de um dos mais esquecidos, infelizmente.
in Revista de Domingo, por Francisco José Viegas, Secretário de Estado das Cultura

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